“Em frente ao computador não estamos mais somente diante de uma máquina, mas, sim, em uma relação com uma ‘tecnicidade’ diferenciadora, distinta de todas as anteriores, pela qual se torna possível uma vinculação direta entre informação e cérebro, e independentemente de si, a linguagem é sonora, visual, escrita ou multimídia.”
Não, essa belíssima frase
não é minha. Ela pertence à
Guilhermo Orosco Goméz, um dos muitos pensadores que se ariscam pelas searas da
cibercultura e da compreensão do
mundo contemporâneo.
Nestes últimos dias estive
alucinado, fazendo uma resenha para uma matéria da faculdade, e terminei sendo obrigado a refletir um pouco mais sobre as
relações técnicas que o homem estabelece hoje, principalmente com as
novas tecnologias (os meios
digitais e
eletrônicos). Bem, mesmo que o trabalho não tenha ficado tão bom quanto eu esperava, acho válido falar um pouco sobre ele e minhas incursões no assunto.
As “mudanças tecnológicas, ademais, supõem transformações substantivas nas práticas sociais que geram” diz Goméz, mas é válido também ressaltar que a
recíproca é tão verdadeira quanto: as práticas sociais, as
apropriações,
definem os usos da tecnologia – e seu futuro. Dentre muitos e muitos exemplos que posso utilizar, vou escolher o mesmo que Stephen Johnson usou em seu livro, Cultura das Interfaces: o
fonógrafo.
Em seu conceito primeiro, o fonógrafo, inventado por Thomas Edison, tinha como finalidade
armazenar conversas telefônicas – entendam: a intenção de Edison era dar um corpo àquele intercâmbio fugaz de informações, que se findavam no tempo e espaço assim que uma das partes desligava o aparelho. Mas, como hoje sabemos, isso não passou de uma pretensão; Edison não contou com uma simples – é bem fácil dizer isso agora – probabilidade: àquela dos usuários
não quererem registrar suas conversas ao telefone.
Bem, talvez os anos de existência do telefone ainda não tivessem sido suficientes para a
instantaneidade e
espontaneidade que lhe são (intrínsecas)
características terem se consolidado ou talvez as pessoas simplesmente quisessem um momento de privacidade, mas, independentemente da razão, o fato é que o fonógrafo não vingou. Porém não era difícil ver que a invenção de Edison tinha
potencial, então logo ela foi
apropriada de outras formas... e o dispositivo terminou por se tornar um
aparelho de reprodução em massa.
A própria sociedade se encarregou de dar uma
finalidade para a invenção, uma finalidade que, apesar de não a inicialmente pensada, supria suas
necessidades e fazia da invenção algo mais
significativo do que poderia jamais poderia ter sido – afinal o que foi mais importante, a secretária eletrônica ou o LP?
E o fonógrafo, “assim ou assado”, mudou o mundo. Antes dependente do telefone, ele desenvolveu um
fim, uma
linguagem, um
caráter social, um
posicionamento econômico e um
formato completamente distinto deste. E, ainda assim, mudou o mundo porque a “tecnologia remete, hoje, não a alguns aparelhos, mas, sim a novos modelos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas.” – não, essa frase também não é minha, mas sim de Jesus Martín-Barbero.
Vamos
atualizar um pouco este debate – convenhamos que o fonógrafo não é o tema mais atual do mundo. Gómez propõe que os novos meios de comunicação se inserem na sociedade
reconfigurando todos os outros, não os
eliminando – ou programando sua
obsolescência, como coloca Pérez de Silva. Não é difícil ver os meios
coexistindo: os jornais estão diminuindo cada vez mais, matérias se tornaram apenas
leads que
remetem ao site do veículo; concursos que antes eram feitos por telefone e, agora, on line, são anunciados constantemente nos intervalos comerciais da televisão, entre outras milhões de formas de
integração que presenciamos; forma-se hoje o que Martín-Barbero chama de “
ecossistemas comunicativos”, ambientes de comunicação
múltiplos, mais
ricos,
complexos e de maior
interação entre si. Em oposição à visão altamente
fatalista de Pérez de Silva, Goméz acredita que “a chegada de um novo meio ou tecnologia não supõe necessariamente, nem tampouco imediatamente, a suplantação do anterior”, basicamente por que os meios (e tecnologias)
não implicam apenas em aspectos técnicos e instrumentais, há
relações e
valores socioculturais intrínsecos a eles e a velocidade de
transformação destes não corresponde à dos primeiros. Não podemos esquecer também que a
implantação e
compreensão de uma nova tecnologia exigem
tempo para que os usuários possam se
adaptar (ou não) – principalmente porque as funções de cada meio são
distintas e atendem a necessidades diferentes das anteriores (e não a
todas elas).
Não tem exemplo melhor hoje da
convergência e
interação entre meios que o
YouTube. O site já possui potencial para transformar um computador em uma espécie de televisão digital (agora, inclusive, contando
séries e
filmes dos estúdios
MGM na
íntegra), mas muitos usuários não fazem uso do serviço pois alegam que sua interface dispersa sua atenção – o que é muito
natural pois, em primeiro lugar a tela do computador, e a distância que o usuário mantém dela,
não são apropriadas para assistir filmes e, em segundo lugar, o site não foi
idealizado (nem
construído) para vídeos de
longa duração. Aplicando a idéia de Goméz num escopo
menor, as mudanças subseqüentes – que exigem readaptações não só dos usuários, mas das outras tecnologias – ao YouTube, podem ser vistas no
AppleTV – um
media center da Apple que é ligado ao aparelho de televisão para dar acesso, entre muitas outras coisas, a mídia digital. Reconhecendo a
visibilidade e
importância que o YouTube adquiriu no mundo, a Apple o “integrou” à AppleTV, provendo-lhe, inclusive, de uma interface mais apropriada ao
meio – à
televisão.
Na década de 1970, um engenheiro da Intel expôs, em reunião com o Conselho de Diretores da empresa, suas
expectativas futuras para a computação (que não era pessoal na época) e propôs à empresa a fabricação de um computador que não fosse um
mainframe, mas sim algo
menor, destinado a
uso doméstico. Como conta Johnson, tudo dependia de uma única resposta para uma pergunta feita pelo Conselho: “que iriam as pessoas
fazer com esses computadores
pessoais?” e “a perspectiva mais
convincente que apresentou envolvia o
arquivamento de versões eletrônicas de
receitas culinárias. De todas as aplicações que acabaram por ser concebidas para o computador pessoal (...) o melhor que lhe ocorreu foi uma versão digital do guisado de atum da mamãe. Foi como inventar a roda e passar imediatamente a demonstrar que esplêndida escora de porta ela dava.”
Hoje acho que a pergunta seria: “que iriam as pessoas fazer
sem esses computadores pessoais?” Os impactos da revolução tecnológica foram tão
significativos quanto às tantas outras revoluções técnicas ocorridas ao longo da história da humanidade – senão
mais. Quando falo “novas tecnologias” não falo de meras
máquinas que surgiram, mas sim de
possibilidades técnicas. Nas palavras de Martín-Barbero, falo da instauração de um novo “modo de
relação entre os
processos simbólicos”. E ainda posso falar mais: as novas tecnologias tornam-se
constituintes culturais que orientam as formas de
produção e de
distribuição de bens e serviços – e que trazem consigo novos
formatos de
comunicação, e até de
cognição.